Caminhos de Peabiru na Região Central do Paraná
- Gralha Azul - Turismo e Aventura
- 19 de mar. de 2024
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O projeto Caminho de Peabiru em Turvo-PR teve fez a investigação e documentação dos vestígios históricos e arqueológicos que indicam a passagem do antigos Caminhos de Peabiru pelo território do município de Turvo, localizado na região central do Paraná.
O trabalho, de caráter inédito e pioneiro no município, envolveu uma extensa pesquisa de campo, entrevistas com moradores, registro audiovisual e levantamento georreferenciado de pontos de interesse histórico, arqueológico e cultural. O projeto foi desenvolvido no ano de 2024 pelos pesquisadores José Bonetti, proprietário do Sítio Arqueológico Marrecas, e Mauricio Pilati, comunicador e guia de turismo especialista na geografia e cultura local.
O Caminho de Peabiru foi uma rede milenar de trilhas interoceânicas abertas e utilizadas por povos indígenas sul-americanos, ligando o Oceano Atlântico ao Pacífico. Esses caminhos foram, posteriormente, percorridos por exploradores europeus desde o século XVI, como o espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca, que deixou relatos escritos fundamentais para a compreensão da trajetória do caminho no atual território brasileiro.
Trecho histórico – Cabeza de Vaca
Um dos principais relatos que embasam a hipótese da passagem do Caminho de Peabiru por Turvo está no livro Naufrágios e Comentários, de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, quando descreve sua jornada, iniciada em 18 de outubro de 1541, desde a costa do atual estado de Santa Catarina - atual cidade de Florianópolis - até a capital da província de Guairá - atual cidade de Assunção, no Paraguai.
Cabeza de Vaca e sua comitiva estavam acompanhados por guias indígenas que conheciam os caminhos ancestrais — reforçando a tese de que as trilhas utilizadas faziam parte do sistema de Peabiru.
Na passagem pelo atual território do Paraná, o grupo cruzou o rio Iguaçu no dia 1º de dezembro, e o rio Tibagi no dia 3 de dezembro. Mais adiante, em determinado trecho, o explorador registra que atravessaram o rio Ivaí e seguiram por uma região ao sul e oeste, possivelmente em uma área entre os atuais municípios de Guarapuava e Campo Mourão, o que compreende diretamente o território do atual município de Turvo.
“Aos sete dias do mês de dezembro chegaram a um rio que os índios chamam Ivaí, com boa quantidade de água e uma boa correnteza, e em cuja ribeira está assentado um povoado de índios cujo principal se chama Abangobi. Todos os do povoado, inclusive as mulheres e as crianças, saíram para receber a comitiva do governador, mostrando grande prazer com a sua chegada.” (Cabeza de Vaca, 1541, Livro Naufrágios e Comentários, página 133)
O rio Ivaí é um dos principais rios do estado do Paraná, e em sua grande extensão são poucos os locais que se pode cruzá-lo, por conta do seu grande volume de água, profundeza e correntezas. Os melhores locais para travessia estão próximos a sua nascente, onde hoje fica a divisa entre os municípios de Cândido de Abreu e Turvo. No local, há dois vaus no rio Ivaí em que é possível atravessá-lo a pé ou a cavalo, utilizados até hoje por moradores locais.
Possivelmente a comitiva de Cabeza de Vaca tenha se utilizado de um destes vaus para seguir sua jornada pela região, visto que sete dias após terem passado o rio Ivaí, os técnicos (chamados pilotos) fizeram uma medição para saber as coordenadas em que o grupo se encontrava. Um dos registros mais significativos para a identificação do local está no relato com a seguinte observação geográfica.
“Aos quatorze dias do mês de dezembro, encontraram um povoado Guarani, onde o principal se chamava Tocangucir. Aí descansaram um dia para se recuperarem da fadiga, tendo os pilotos aproveitado para medir a localização. O caminho por onde seguiam era a oeste-noroeste e quarto-noroeste, estando aquele lugar a vinte e quatro graus e meio, afastado um grau do trópico.” (Cabeza de Vaca, 1541, Livro Naufrágios e Comentários, página 134)
A referência ao grau de latitude — 24,5° sul, ou seja, um grau abaixo do Trópico de Capricórnio (23,5°S) — combinada com a direção oeste-noroeste, permite inferir com relativa precisão o ponto geográfico aproximado da expedição nesse trecho da viagem. Considerando os instrumentos disponíveis na época (como astrolábios e bússolas), a margem de erro para esse tipo de medição girava em torno de 1 a 2 graus para a latitude e cerca de 5 graus para a direção. Ainda assim, esses dados apontam de forma bastante consistente para a região central do atual estado do Paraná, mais especificamente para a área onde hoje está localizado o município de Turvo.
Esse tipo de informação é fundamental para reforçar a hipótese de que os antigos caminhos seguidos pela expedição espanhola cruzavam terras atualmente conhecidas por abrigarem vestígios arqueológicos, como gravuras rupestres e sítios indígenas, que podem estar relacionados aos antigos Caminhos de Peabiru.
Vestígios de antigas habitações indígena em Turvo
Durante a pesquisa, foram visitados e documentados os seguintes locais de interesse:
Sítio Arqueológico Marrecas: Localizado no interior do município, o sítio possui mais de 350 artefatos arqueológicos, evidências materiais de antigas ocupações indígenas. Tendo ferramentas de pedra lascada Itararé-Taquara, com aproximadamente 4 mil anos, e fragmentos cerâmicos Tupi-Guarani, com cerca de 600 anos. É considerado um dos pontos mais importantes da pesquisa por reforçar a ocupação milenar da região.
Complexo de Cavernas e Gravuras Rupestres: Cavernas localizadas no Cânion Salto Seco, às margens do rio Cachoeira, com inscrições rupestres geométricas e simbólicas, como triângulos e linhas paralelas. Embora não haja confirmação científica do uso direto dessas cavernas pelo Caminho de Peabiru, sua presença próxima aos vaus do rio e sua simbologia indicam forte valor cultural e espiritual.
Trilha das Cavernas: local próximo ao Rio Ivaí onde se encontram três cavernas de arenito, a maior delas com 62 metros de extensão, longa e estreita. Também outra caverna mais espaçosa, com salão amplo arredondado, possivelmente uma antiga morada indígena, pois no fundo da caverna é possível observar algumas gravuras arqueológicas. Próximo dela fica a Gruta das Gravuras, um paredão com diversas registros arqueológicos gravados na rocha.
Sítios naturais de observação e alinhamento: A pesquisa também identificou pontos elevados e áreas planas que possivelmente serviam como mirantes ou pontos de orientação no trajeto do caminho. A partir deles, foi possível estabelecer distâncias visuais e aproximações geográficas entre os sítios visitados.
Vaus dos rio Ivaí, rio Marrecas e rio Pedrinho: São quatro pontos de travessia natural nos principais rios da região. Os vaus são passagens rasas nos cursos d’água que permitiam a travessia a pé ou a cavalo. Foram localizados dois vaus nos rios Ivaí (caminho para o norte), um no rio Marrecas (caminho para o leste) e um no rio Pedrinho (caminho para o oeste), além de haver o caminho por terra para o sul, conforme indicam o alinhamento dos vestígios citados acima. Essa configuração geográfica permitia a chegada e saída caminhando para todas as regiões do estado do Paraná, com forte possibilidade de estar no traçado original do Peabiru.
Distâncias e Características dos Vestígios Arqueológicos e Naturais
A equipe também analisou distâncias relativas entre os pontos registrados: tendo como ponto de partida o Sítio Arqueológico Marrecas, e o ponto final do vau do rio Ivaí, que estão separados por 21 km em linha reta. Entre meio estes pontos, estão todos os outros locais pesquisados: cavernas de arenito, paredões com gravuras rupestres indígenas, trilhas e vaus nos principais rios da região.
O segundo ponto mapeado está localizado a cerca de 3 quilômetros do Sítio Arqueológico Marrecas, na margem do rio Cachoeira, onde foi identificado um complexo de cavernas de arenito. Essas cavernas apresentam diversas dimensões e formatos, e em pelo menos três delas foram registradas gravuras rupestres, reforçando a hipótese de que esses locais serviram como moradia ou espaço cerimonial indígena no passado. Algumas delas apresentam formatos também encontrados na serra catarinense, como na cidade de Urubici-SC, que indicam a interligação norte sul entre as regiões. Acredita-se que as primeiras ocupações nesse local tenham sido feitas pelos mesmos povos Itararé-Taquara, e possivelmente também por outras etnias em períodos posteriores.
O terceiro ponto analisado foi uma segunda área com cavernas, conhecida atualmente como Trilha das Cavernas, localizada próxima ao rio Ivaí e a 14,4 quilômetros das cavernas do rio Cachoeira. Nesse local, destaca-se o Salão de Areia, uma caverna de grandes dimensões com marcas de ocupação e gravuras rupestres em seu interior. Próximo a essa caverna, também há paredões com inscrições semelhantes às encontradas em outros pontos do território. A presença dessas marcas reforça a hipótese de que esse complexo foi utilizado como abrigo e como ponto de passagem por povos indígenas em deslocamento.
O quarto ponto mapeado e documentado foram os vaus dos principais rios da região: Ivaí, Marrecas e Pedrinho. Esses vaus são travessias naturais ou ligeiramente modificadas ao longo do tempo que permitem a passagem a pé ou a cavalo pelos rios — característica essencial para os antigos caminhos indígenas, que priorizavam rotas de fácil acesso. Um dos vaus está localizado a apenas 3,2 quilômetros das cavernas do rio Ivaí; outro a 4,3 quilômetros; e os vaus dos rios Marrecas e Pedrinho também estão em distâncias estratégicas, entre 6 e 7 quilômetros dos demais pontos mapeados.
Esses elementos indicam a forte possibilidade de conexão entre as regiões por trilhas ancestrais, compondo um sistema de circulação territorial coerente com o modelo do caminho do Peabiru.
Georreferenciamento dos Pontos Pesquisados
Sítio Arqueológico Marrecas: 24°57'00.2"S 51°24'25.6"W
Complexo de Cavernas e Gravuras Rupestres do Rio Cachoeira: 24°55'33.6"S 51°25'15.1"W
Complexo de Cavernas e Gravuras Rupestres do Rio Ivaí: 24°47'59.9"S 51°23'23.8"W
Vau do Rio Ivaí (mais a oeste): 24°45'41.7"S 51°23'28.1"W
Vau do Rio Ivaí (mais a leste): 24°45'49.5"S 51°20'47.5"W
Vau do Rio Pedrinho: 24°45'24.3"S 51°24'42.9"W
Vau no Rio Marrecas: 24°47'11.0"S 51°19'08.3"W
Resultados e Perspectivas
Além da realização do documentário fotográfico e audiovisual — que registra entrevistas, imagens dos locais e narrações sobre a história do Caminho de Peabiru — foi elaborado este relatório de pesquisa informações, georreferenciamento, depoimentos e registros geográficos dos pontos visitados. O trabalho já gerou impactos positivos na comunidade local, despertando o interesse por parte de professores, estudantes e lideranças culturais sobre a importância do patrimônio arqueológico do município.
Este projeto constitui um trabalho de base, de mapeamento e descoberta, que abre novas frentes de investigação. Embora tenha trazido resultados significativos — como a localização de locais inexplorados e o cruzamento de fontes históricas com dados geográficos, a pesquisa deixa um legado para futuras ações. Ela oferece fundamentos iniciais para novas pesquisas acadêmicas, desenvolvimento de roteiros turísticos culturais e ações de educação patrimonial nas escolas da região.
Contrapartida Social
Como parte da contrapartida social do projeto, a equipe promoveu visitas guiadas ao Sítio Arqueológico Marrecas em 2024, com alunos da rede pública municipal e estadual de Turvo. Durante essas visitas, foram realizadas palestras educativas com foco na história indígena, arqueologia e preservação do patrimônio local. A ação buscou integrar o conhecimento técnico com a educação formal, fortalecendo os vínculos entre a juventude e sua história regional.
Equipe técnica responsável pelo projeto:
José Bonetti
Lucia Theisen Bonetti
Mauricio Grando Pilati
Mercedes Pilati
Verediane Galvão Fonseca
Relatório de pesquisa publicado em março de 2024, referente ao projeto Documentário Caminho de Peabiru em Turvo-PR, aprovado pela Lei Paulo Gustavo, realizado no município de Turvo, estado do Paraná.